sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Resenha de Elza Soares - A Mulher do Fim do Mundo




O mundo da música é bastante surpreendente e escolher escrever sobre ele é uma tarefa pode à qualquer momento nos colocar em algumas situações inimagináveis. Explico: se me perguntassem quando iniciei o Filho do Blues que escreveria uma resenha entusiasmada de um álbum de Elza Soares eu provavelmente, incrédulo, iria sorrir desdenhosamente (mais por ignorância minha do que por falta de méritos da sambista de 78 anos, mas como não fazia parte da minha esfera musical, nunca cheguei a dar muito valor ou atenção). Pois o mundo da música, amigos, nos prega peças (ou lições) deveras curiosas. É com uma satisfação redobrada que escrevo hoje a resenha do último trabalho da cantora Elza Soares, chamado A Mulher do Mundo. Diante da correria de fim de ano, tentando organizar a lista de melhores álbuns do ano e fazendo uma derradeira busca por novidades que possa ter deixado passar, um amigo me indicou este álbum com ótimas referências. Como nos últimos anos ampliei bastante meu nicho musical, fui conferir. E mais uma surpresa: A Mulher do Fim do Mundo é um dos discos mais interessantes do ano em diversas esferas; musicalmente, o álbum transita de forma muito natural e elegante entre diversos gêneros musicais, como o samba, claro, o rock, o eletrônico, dentre outros; e, principalmente, o âmbito lírico não fica submisso ao campo sonoro e, por isso, A Mulher do Fim do Mundo é um excepcional fruto do seu próprio tempo, com letras bastantes críticas sobre as transformações, desafios, problemas e retrocessos que testemunhamos diariamente na sociedade brasileira. As temáticas são amplas e vão desde a violência doméstica, a violência policial nas periferias, questões de gênero como feminismo e sexualidade. Ou seja, Elza ainda tem muito o que dizer!



A história do disco já inicia de forma curiosa, pois mesmo com décadas de carreiras e discos lançados, A Mulher do Fim do Mundo é o primeiro disco de Elza Soares com músicas totalmente inéditas (de outros compositores). E o álbum já começa em grande estilo, com o poema “Coração do Mar”, de Oswald de Andrade, cantada à capela, que já é emendada com o samba tradicional que dá título ao álbum, “A Última Mulher do Mundo”, uma Ode à Avenida, em que Elza confirma: “Mulher do fim do mundo eu sou e vou até o fim cantar”. De fato, a música vai entrando num fade out e ela continua cantando até o fim. A faixa seguinte, “Maria da Vila Matilde” retrata a violência doméstica e os esforços para escapar deste ciclo pernicioso, com Elza dizendo várias formas de manter afastado o agressor, como ligar para o 180, colocar o cachorro pra cima dele, e, por fim, Elza canta, quase como um alívio, uma libertação: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.




“Luz Vermelha” também tem uma letra reflexiva e cheia de imagens de periferia, tiroteios, que remetem a solidão e ao enclausuramento de uma metrópole como São Paulo, e aqui o samba já se encontra com a guitarra elétrica, fazendo uma mistura bem interessante, com rap e algo parecido com punk. O tom apocalíptico é resumido quando Elza, ou o anão, atesta: “bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda”. Inclusive, papas na língua é coisa que Elza Soares realmente não tem, a começar pelo título da faixa seguinte, “Pra Fuder”, com imagens, por sua vez, bem luxuriosas, como “unhas cravadas induzem latejo”.

Em “Benedita” a temática volta a ficar séria, com a sonoridade migrando frequentemente, indo e voltando, enquanto Elza fala das frequentes vítimas de balas perdidas pelas periferias Brasil afora e do tráfico de drogas. “Benedito é uma fera ferida, traz na carne uma bala perdida”.




Na faixa “Firmeza?!”, enquanto retrata um diálogo típico da periferia, o destaque vai para Elza se aventurando um pouco mais no rap com um saxofone no fundo bem interessante. O tango mórbido e póstumo de “Dança” mantém o ritmo interessante, bem como “Canal”, com traços meio que orientais e referências históricas interessantes, como o “brilho do Farol de Alexandre”. O caminho é mais solitário em “Solto”, que contém uma orquestra, enquanto Elza mais fala do que canta. Para finalizar, “Comigo” resgata inicialmente o barulho de guitarras, mas de súbito tudo some e Elza volta a cantar à capela, tal qual o início, soltando um dos mais belos versos do disco: “levo minha mãe comigo pois deu-me seu próprio ser”.

E é assim que finaliza A Mulher do Fim do Mundo, um silêncio, seguido de mais silêncio, e, depois, lá no fundo, ainda ressoando a voz de Elza Soares, afinal, como ela mesma disse: “eu vou cantar até o fim”. Sinta-se à vontade. E perdão pela injustiça.





Nenhum comentário:

Postar um comentário