sexta-feira, 31 de julho de 2015

Resenha de Buddy Guy - Born To Play Guitar


                Sem dúvida, o ano de 2015 ficará marcado na história do blues e da música como o ano em que perdemos B.B. King, aos 89. O luto do blues, no entanto, será inegavelmente bem mais duradouro. Originalmente um estilo executado pela comunidade negra norte-americana e direcionado para a própria audiência negra no início do século XX, foi somente a partir da década de 60, especialmente impulsionado pela grande evidência dada ao blues pelas bandas britânicas, que o blues foi apresentado a um público mundial em escala mundial – e até certo ponto, apresentado para os brancos do próprio Estados Unidos. A partir daí, apesar de ter sido a base para inúmeros estilos da música popular, o blues foi perdendo tanto o público consumidor, seduzido pelos estilos mais modernos, quanto os seus grandes expoentes.  Fora os que já haviam partido até então, os gigantes lendários do blues foram caindo um a um: Sonny Boy Williamson II (1965), Mississippi John Hurt (1966), Little Walter (1968, Skip James (1969),  T. Bone Walker (75), Howlin’ Wolf (76), Muddy Waters (83), Lightnin’ Hopkins (82), Son House (88), Memphis Slim (88), Willie Dixon (92), John Lee Hooker (01), sem contar, claro, com vários outros. Então, em um cenário em que a renovação de grandes nomes no mainstream é difícil e com a perda inevitável dos ícones remanescentes, a morte de B. B. King foi muito sentida e lamentada, tanto pelo seu valor humano quanto pelo seu valor simbólico.

                É imerso nesse contexto que o mundo do blues e da música em geral recebe com grande entusiasmo o novo álbum de Buddy Guy, uma das últimas lendas vivas do blues, que acaba de completar 79 anos. Born To Play Guitar tem um duplo valor, igualmente importantes. O primeiro é o valor musical de mais um álbum na carreira desse grande guitarrista, que influenciou a vida de nomes como Jimi Hendrix, Eric Clapton, Jimmy Page, Rolling Stones, etc e que mais uma vez conta com várias participações de peso, tais como Billy Gibbons, da banda ZZ Top, Van Morrison, Eric Clapton (olha ele aí), Kim Wilson, da banda The Fabulous Thunderbird, e Joss Stone. O outro é o valor simbólico que pode estar contido na mensagem que se diz por essas terras tropicais: o blues está vivinho da Silva! Buddy Guy canta sobre o blues com a propriedade conferida de quem viveu para a música e toda a tradição desses nomes que já se foram está presente e pode ser sentida no disco. Além disso, ainda tem uma faixa especial para B.B. King, “Flesh & Bone”, cantada com Van Morrison, e uma emocionante homenagem a Muddy Waters, na música que fecha o álbum, “Come Back Muddy”. Buddy Guy já falou em entrevistas que o último recado dado por Muddy Waters, numa conversa pouco antes de falecer, foi um apelo bem claro: “keep the damn blues alive”. É a isso que Buddy Guy tem se dedicado desde então e Born To Play Guitar é uma declaração apaixonante de amor a um estilo de música, de vida, e, claro, ao instrumento a que está mais associado.


              A faixa que abre o álbum dá o tom autobiográfico que reaparece em vários outros momentos do disco. Começa com Buddy Guy acompanhado somente de sua guitarra, mas no decorrer da música vão sendo acrescidos o piano e a bateria. A letra narra sua ascensão, saindo de Louisiana para ser reconhecido no mundo todo por causa do blues e da sua guitarra. “Wear You Out” já é bem mais agressiva, um blues-rock com solos mais vibrantes e a voz rasgada do convidado Billy Gibbons. A parceria funcionou muito bem, Guy com sua voz mais limpa e Gibbons apresentando o outro lado.  “Back Up Mama” é outra que se destaca, com um estilo próximo ao Delta blues eletrificado de Chicago e uma letra que mostra a já clássica malícia sexual bastante presente na tradição do blues “i got a back up mama, if mama number one is not around”. Puro blues. Mais uma vez, Buddy Guy executa belos solos, que se alterna com solos de pianos. Em“Too Late” outro instrumento se insere na equação: Kim Wilson agrega sua intensa gaita e, sem dúvidas, torna o conjunto ainda mais compacto e poderoso, uma locomotiva a pleno vapor. As músicas do álbum inclusive estão mais concisas e curtas, diferentes de outros trabalhos de Guy nos quais algumas das faixas ultrapassam os sete minutos. Em Born To Play Guitar as mais longas ultrapassam pouco os cinco minutos, mas dá a sensação de que pouco ou quase nada deixou por dizer.



            “Whiskey, Beer & Wine” é mais dançante, um pouco funky, feita pra festejar, como o próprio nome sugere e relaxar e se ver livre das preocupações, pois, como Guy diz: “you can fix anything with whiskey, beer and wine”. Quem irá questionar o velho Guy nessa?  Ainda dá tempo para uma homenagem ao “good ol’ days”. Em “Kiss Me Quick”, Kim Wilson faz novamente um trabalho vigoroso na gaita. As duas faixas que contam com sua presença são as menores do disco, mas são talvez as mais intensas. “Crying Out of One Eye” apresenta um conjunto de metais, que deixa o clima mais soul. A letra é muito interessante, mostrando a falsidade do sofrimento, enquanto está rindo e saindo por aí. when you say goodbve you were only crying out of one eye”. Ótima imagem. “(Baby) You Got  What It Takes” é a vez do dueto de Buddy Guy e Joss Stone, com sua voz sensual.

Depois da sequência de participações, uma série de Buddy brilhando sozinho com sua guitarra. “Turn Me Wild” parece ter um tom biográfico em sua relação com o blues e a guitarra. “didn’t learn nothing from a book, no I never took a leason, when it comes to the blues I do my own kinda of messin’”. Ao invés de um garotinho que sempre andou na linha, o blues o deixou como um cachorro vira-lata procurando a toca do coelho. Em “Crazy World” Buddy Guy deixa um pouco de lado os temas mais tradicionais do blues, geralmente bem mais regional, para refletir a situação meio insana do mundo na atualidade, como violência, concentração de renda, fome, e outras das mazelas da sociedade global. É como o blues saísse do sul norte-americano para ver o seu reflexo também em esfera mundial. “Smarter Than I Was” tem um riff constante e a voz de Guy um tanto distorcida e gritantes solos de guitarra.



A parte final é um tributo ao blues, claro, e a dois gigantes do gênero. “Thick Like Mississippi Mud”, mais um dos grandes destaques álbum, já começa atestando uma das grandes verdades do blues: “good whiskey and women can drop you to your kness”. Os momentos mais emocionantes sem dúvidas ficam para as duas últimas faixas. “Flesh & Bone”, com a participação de Van Morrison, é dedicada a B. B. King, falecido em maio desse ano. Segundo Guy, a música já havia sido gravada quando ficou sabendo da morte do amigo. A letra, com a música no clima religioso, repleta de órgãos e corais, fala exatamente da mortalidade. “This life is more than flesh and bone / find out now before you gone / when you go your spirit lives on / this life is more than flesh and bone”, diz o refrão. Por fim, “Come Back Muddy” é uma tocante e sincera música saudosa de Muddy Waters, falecido em 1983. A delicada canção, acompanhada pelo violão e piano, mostra a falta que Waters faz tanto artisticamente (“come back Muddy, Lord knows you can’t be replaced”) quanto pessoalmente (“come back Muddy, man I sure miss your face”).

Born To Play Guitar não pode ser visto como mais um número no catálogo extenso e bem sucedido de Buddy Guy, vencedor de vários Grammys (provavelmente ganhará mais um agora). É muito mais do que isso; é maior do que o próprio Buddy Guy ou qualquer outro; é uma reafirmação não só de um gênero musical, da vida de um artista ou de um instrumento específico: é a reafirmação da contribuição e dedicação de todos os que vieram antes e já se foram, dos que ainda estão por aí e dos que ainda virão. Acima de tudo, é a constatação de que o blues está, sim, vivo pra caralho, viu Muddy (e todos os outros)? Podem descansar em paz.  


sexta-feira, 24 de julho de 2015

Resenha de Ronnie Earl & The Broadcasters - Father`s Day




Ronnie Earl, seja na banda Roomful of Blues ou, principalmente, com The Broadcasters, já possui um status consolidado no mundo do blues pelo seu talento e maestria na guitarra, sendo, atualmente, um dos principais expoentes do blues, tanto pelo seu domínio técnico da guitarra quanto pela carreira relevante que construiu desde a década de 80 até hoje, sempre em atividade e lançando materiais inéditos com frequência, seja como artista solo ou em alguma das bandas das quais faz parte.

Apenas um ano depois do álbum Good News - pelo qual ganhou o prêmio de Melhor Guitarrista do blues de 2014, Earl reúne sua banda novamente e volta a contar com a presença especial da vocalista Diane Blue e Michael Ledbetter, parente distante do legendário Leadbelly, para o lançamento de um disco especial em vários sentidos. Father`s Day, nono álbum lançado pela Stony Plain Records, conta com a tradicional intensidade de Earl somada pela primeira vez em décadas a uma seção de metais que mescla o blues com um toque de soul bem interessante. O álbum também carrega um significado especial e biográfico para Earl: é dedicado para o seu pai, Jerry Akos Horvath, sobrevivente do Holocausto, libertado do campo de concentração de Auschwitz e que faleceu no ano passado no dia dos pais. A relação entre Earl e seu pai, Jerry, foi bastante conturbada e cheia de altos e baixos, mas no fim da vida, Earl conseguiu finalmente se entender com seu pai. A faixa que dá título ao álbum, "Father`s Day", retrata exatamente esse processo de alcançar a paz e perdoar. "Can you make peace?  Can you be the generous one? Can you forgive?  Can you cancel all the debt?", ele canta.

Mesclando covers dos grandes nomes que o influenciaram com faixas originais, Ronnie Earl busca fazer uso de toda a potencialidade de sua banda e dos dois vocalistas, fato comprovado com a presença de apenas uma faixa instrumental, "Moanin" - o que, vindo de alguém que é um exímio compositor de musicais instrumentais, é bastante significativo. Os destaques são inúmeros e o disco começa com uma sequência sensacional, com "It Takes Time", de Otis Rush, seguida da original "Higher Love", um dueto muito bonito com Diane Blue sobre a força do amor e perdão, voltando com Otis Rush para a incrível "Right Place, Wrong Time", com solos de guitarra de tirar o fôlego e mais de sete minutos de blues de primeira qualidade.

Magic Sam está muito bem representado com "What Have I Donde Wrong?", cantada por Diane Blue. O ritmo diminui um pouco, o soul toma conta e fica mais contemplativo/reflexivo em "Givin Up", com um belos solos de saxofone, guitarra e teclado, além de um dos melhores vocais do disco, por Ledbetter. "Every Night About This Time", de Fats Domino, mantém o fluxo correndo. O acerto de contas de "Father`s Day" certamente se destaca pela sua bagagem pessoal e emocional, incorporada durante mais de oito minutos por melodia e música igualmente emocionantes. Mais uma vez Michael Ledbetter se destaca por sua voz intensa.

A parte final também reserva seus destaques. B.B. King está presente com a cover da sua "I Need You So Bad". A bela voz de Diane Blue retorna para "I`ll Take Care Of You" em seus mais de nove minutos de música. Depois de uma nova versão de uma de suas músicas, "Follow Your Heart", acrescentando mais contornos do soul nela, e mais uma de Magic Sam, "All Tour Love", Ronnie Earl e companhia resolvem finalizar com a tradicional gospel "Take My Hand, Precious Lord", de Rev. Thomas A. Dorsey.

Pode-se dizer sem dúvidas que Father`s Day é um álbum de blues completo. Respeita e reverencia o passado com covers executadas excepcionalmente, seguidas de novas canções originais para manter a tradição viva. Ainda por cima, como um bônus, ainda deixa uma boa lição de vida. Como Earl falou na nota de lançamento do disco: “This album is made for my beautiful father, and we came to peace in the end. Don’t ever give up on your family and don’t quit until the miracle happens.”


segunda-feira, 20 de julho de 2015

Resenha de Wilco - Star Wars


                Em 2013, nós vimos como é o espetáculo midiático para o lançamento de um novo álbum. Em todos os lugares, em todas as mídias, sejam elas tradicionais como outdoors ou digitais, como as redes sociais, estavam estampadas propagandas antecipando o novo lançamento de Arcade Fire, Reflektor. Foi um sucesso. Também em 2013, uma das grandes lendas da música, David Bowie, anunciava subitamente o seu retorno com um novo álbum, The Next Day, gravado totalmente em segredo. O mundo da música ficou em polvorosa na espera do conteúdo do disco. Agora vemos o oposto. Isso porque ontem (19), a banda norte-americana Wilco, uma das maiores do novo milênio, foi além, lançou de surpresa e colocou disponível ontem mesmo para download grátis em seu site o nono disco da banda, Star Wars – nenhuma relação com o gato fofinho na capa. Sem um ou dois meses divulgando singles, fazendo programas de TV, nem nada disso. É música e pronto. E o resultado é igualmente renovador.

                Uma das bandas mais festejadas das últimas duas décadas, com clássicos como Being There (1996) e Yankee Hotel Foxtrot (2002) na bagagem, Wilco encontrava-se claramente na meia-idade: fazendo discos seguros, mas na zona de conforto. Os três últimos discos (Sky Blue Sky, de 2007, Wilco, de 2009 e The Whole Love, de 2011) são todos bons trabalhos, nos quais a banda, no entanto, não se arrisca tanto, não tenta experimentar novos sons. Com Star Wars, o espírito aventureiro e ambicioso – apesar da estratégia de lançamento indicar o contrário – parecem ter retornado. No decorrer de 11 músicas e pouco mais de trinta e três minutos, Jeff Tweedy e companhia apresentam um som barulhento e construído em novas texturas, com experimentos sonoros muito interessantes. A sonoridade vai desde o glam rock de David Bowie, o psicodélico dos Beatles até o alternativo dos anos noventa. Uma mixórdia que empolga em todos os momentos.

                E os indícios estão presentes já no primeiro minuto, na barulhenta faixa instrumental “EKG” e se consolidam na faixa seguinte, “More...”, com guitarras intergalácticas em um mar de distorções para todos os lugares do ouvido. “Random Name Generator” é rock guiado por um riff coeso e bem marcado. A banda está funcionando como um organismo musical vivo e cada pedaço das músicas são, com certeza, resultado de um trabalho detalhado de ensaios e pura criatividade musical. “The Joke Explained” segue uma construção lírica dúbia e que soa improvisada e enigmática – talvez a razão da capa do álbum ter sido um gatinho peludo esteja em algum lugar por aí.

                “Your Satellite”, de longe a mais longa de Star Wars (passa da casa dos cinco minutos), tem uma guitarra que soa como o motor de uma viagem espacial, num ritmo cada vez mais forte e crescente, com o final parecendo uma turbulência durante o percurso. Depois de tanta guitarra, a acústica “Taste The Ceiling” apresenta uma sonoridade mais próxima ao Wilco adulto dos últimos três discos. “Picked Ginger” tem umas reviravoltas bem interessantes e inesperadas, misturando um riff fixo com solos desconcertados. A primeira balada propriamente dita “Where Do I Begin” mostra, como sempre, a proeza de uma banda acostumada a fazer belíssimas baladas, ao menos até, mais uma vez, a música tomar um caminho inesperado em uma efusão de sons – pena que dura pouco. Mais uma vez Wilco opta pelo caminho da surpresa, do inesperado. “Cold Slope” tem um ritmo sensual e dançante bem cadenciado no glam rock dos anos 70. “King of You” serve praticamente como uma sequência, dando seguimento à cadência da faixa anterior. A banda finaliza com a bela “Magnetized”, na qual, por um momento, a guitarra é deixada de lado em favor dos teclados e pianos.  

                Star Wars é recebido com aquele ar atordoado, confuso, mas ao mesmo tempo extasiado, desvendando os mistérios pouco a pouco de um artefato recém-descoberto, afinal, fomos dormir um dia sem nada e acordamos no seguinte com um dos melhores álbuns do ano à nossa disposição. 




domingo, 12 de julho de 2015

Resenha: Daddy Mack Blues Band - A Bluesman Looks At Seventy


                Algumas decisões importantes normalmente são tomadas até certo ponto da vida. Nos chamados anos formativos é que as pessoas decidem o que vão fazer da vida e a partir daí seus esforços são feitos em torno dessa escolha. No mundo da música é comum vermos nas biografias que os artistas começaram a aprender guitarra na mais tenra infância. A maior parte dos bluesman começou dessa forma; ainda criança alguém da própria família comprava-lhes uma guitarra e eles aprendiam a tocá-la ouvindo outros bluesman no rádio ou em disco. Esse roteiro não serve, no entanto, para “Daddy” Mack Orr, natural de Como, Mississipi, que completa 70 anos com o lançamento do novo álbum de sua banda, Daddy Mack Blues Band, chamado A Bluesman Looks at Seventy.

Mack Orr aprendeu a tocar guitarra apenas aos quarenta e cinco anos e, nos últimos 25 anos de sua vida, tem se dedicado a tocar blues pelo mundo afora (antes de iniciar a carreira de bluesman, Mack Orr apenas conhecia quatro lugares – Wisconsin, Kansas City, Chicago e Jackson). A Bluesman Looks At Seventy é o sétimo disco da banda e, sem dúvida, um dos mais vigorosos. Mack Orr chega aos setenta com uma voz expressiva, acompanhando a energia nostálgica que flui de sua banda. Antigo coletor de algodão, que passou a trabalhar como mecânico de carro, Mack Orr possui aquela experiência de vida no duro e cruel Sul rural, o Deep South. É quase como uma lei; aqueles que possuem essa ligação tocam um blues autêntico e honesto, ou seja, sabem exatamente do que falam – preocupação com dinheiro, mulheres, trabalho, os assuntos preferidos do blues. As músicas são compostas por Eddie Dattel, fundador da Inside Sounds, e Wally Ford, mas Mack Orr consegue torná-las suas pela autenticidade.



Os destaques, dentre as 14 faixas do disco, ficam com a festeira “Champagne Fantasy”, que abre o disco, já que Orr afirma que “everyday is Friday and everyday is New Year’s Eve”. “Muddy Waters”, mostra situações de injustiças raciais, como passar vinte anos na prisão por um crime que não cometeu, dentre outras, nas quais Orr afirma “if that ain’t blues, my friend, then Muddy Waters wasn’t black”. “Fix it When I Can”, mais funky, foi inspirada no trabalho de Mack Orr como mecânico de carros. Engana-se quem acha que aos setenta não se pense mais em sexo casual, como em “You Don’t Have to Love Me”. A jogatina e o blues estão totalmente interligados e “Gambling House” representa essa relação de jogar até o dinheiro acabar.. “Hoodoo Blues” resgata a magia, as superstições e feitiços da comunidade afro-americana do Sul dos Estados Unidos. Os compositores Dattel e Ford entregaram de presente para Orr “I Like Fishin’”, já que este é o seu hobby favorito. “Pocketful of Blues” é, como o próprio título já sugere, puro blues de uma pessoa que sabe onde está se metendo.

A autenticidade é tudo na tradição do blues. Quando encontramos um álbum como A Bluesman Looks At Seventy, vemos que o blues está forte e seguro, tal qual Daddy Mack Orr com seus setenta anos – e contando. 


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Resenha do documentário What Happened, Miss Simone?



                O mundo da música e do entretenimento de forma geral tende a criar herois, vilões ou, em alguns casos, vende a imagem pronta e única de um artista. Uma das formas de eternizar essas versões é através da biografia, seja ela na forma de livro, filme ou documentário. Mas uma boa biografia não é aquela que eterniza uma versão única de determinada pessoa; a boa biografia, na verdade, é aquela que apresenta o biografado(a) em toda sua complexidade humana, afinal, foi através dela que seu gênio foi aflorado e ele(a) alcançou o sucesso; uma boa biografia deve, enfim, como diria Chimamanda Adichie, desviar-se do “perigo de uma única história”. E é exatamente isso que acontece com What Happaned, Miss Simone? (2015), documentário dirigido por Liz Garbus que conta, com um extenso material original e inédito, a vida da cantora, pianista e ativista Nina Simone (1933-2003), disponível agora também pelo Netflix. Afinal,  Nina Simone, além de uma das maiores cantoras de todos os tempos, dificilmente caberia numa narrativa única.

                A diva do blues, do jazz e do soul (o que já evidencia o seu ecletismo musical) é filha de uma época turbulenta e sua vida é um reflexo disso. Desde cedo, ela foi testemunha ocular da opressão e exploração que ela própria e seu povo sofriam; ela viveu sob Jim Crow, as leis segregacionistas; ela viu a violência sistêmica contra os negros, especialmente no Sul, por grupos radicais brancos; ela sentiu o racismo ao ser rejeitada em uma entrevista por causa da cor de sua pele. Nascida no segregado Estados Unidos, na Carolina do Norte, no seio de uma família bastante religiosa, Nina Simone participou também da Grande Migração, movimento migratório dos negros do sul dos Estados Unidos em direção às cidades do norte em busca de empregos industriais. Nina Simone foi para Nova York e passou a tocar à noite em bares locais e a trabalhar durante o dia. Mais uma vez ela foi testemunha das condições dos trabalhadores negros que, após fugir do pesadelo sulista, agora possuíam um emprego, mas aos quais ainda era negada uma vida digna e em iguais condições com os brancos. Ainda assim, no final da década de 50, ela também conheceu o sucesso instantâneo com seu primeiro hit “I Loves You, Porgy” e do álbum Little Girl Blue, com outro hit "My Baby Just Cares for Me". 


            

A partir daí sua vida mudou. À vida social turbulenta somou-se uma personalidade forte, irascível e um casamento complicado com Don Ross, também seu empresário. À violência coletiva da sociedade somou-se a violência doméstica de um marido que a forçava a trabalhar além dos limites e que a espancava. Como que alheia a todos esses desmoronamentos, seu sucesso só aumentava com a sequência de álbuns de estúdio e ao vivo de extrema qualidade que transitava não só pelo blues ou jazz, mas também pelo soul, pop e clássico. Apesar de em alguns momentos utilizar-se de sua música para uma atuação política específica e críticas ao sistema social vigente, foi no auge de sua popularidade, que Nina Simone decidiu-se que não existia mais meio termo e não poderia mais ser apenas testemunha ocular do seu tempo, mas refleti-lo e atuar diretamente na sociedade pela causa de seu povo. Em 1964 ela tornou-se uma ferrenha ativista dos direitos civis dos negros americanos e compôs canções fortíssimas denunciando as condições injustas sociais aos quais os negros estavam submetidos. “Mississipi Goddam”, por exemplo, (traduzido como Mississipi Puta que pariu), banida em vários Estados sulistas, inspirada pelo assassinato de Medgar Evers e a explosão de uma Igreja no Alabama, foi revolucionária. “To Be Young, Gifted and Black” tornou-se quase um hino do movimento dos direitos civis.





         A sua atuação não ficou no campo da música e Nina Simone participou pessoalmente na luta pelos direitos civis, marchando na marcha de Selma a Montgomery com Dr. Martin Luther King. Apesar de não ser muito adepta da não violência (forma de atuação e revolta utilizada por King) e ser mais próxima do espírito mais incendiário de Malcom X, o assassinato de Dr. King atingiu-a profundamente. O álbum Nuff Said! foi gravado ao vivo no Westbury Music Fair e foi dedicado inteiramente ao ativista assassinado. O documentário apresenta a radicalização de Nina Simone, mostrando-a defendendo ideias bastante fortes em relação ao momento que estava vivendo, como criação de um Estado separado, violência e morte aos brancos. Apesar de ter sido um período intenso para sua vida, de bastante instrução, dedicação e aprendizado, deixou uma imagem polêmica e bastante manchada devido a suas ideias revolucionárias. Nina Simone acabou deixando os Estados Unidos em 1970 e passou a viver períodos na Libéria, Suíça, Holanda e França até o fim de sua vida.



O documentário mostra o outro lado; Depois da luta coletiva pelos direitos civis agora sua luta era individual e contra si mesma, o que a fez perder tudo e chegar ao fundo do poço, tendo que apresentar-se por 300 dólares em cafés e bares locais, na França. Diagnosticada como bipolar, com a ajuda de amigos passou a se restabelecer e tomar medicamentos que a ajudaram a controlar seu temperamento imprevisível, retomando a carreira para apresentações ao vivo e alguns álbuns de estúdio na década de 80. 

Nina Simone faleceu em 2003, no sul da França. Suas cinzas foram espalhadas por vários países africanos, o que indica de forma bastante categórica um dos principais alicerces de sua vida. Nina Simone construiu uma das biografias mais intensas, passionais e fascinantes do mundo da música e o grande mérito de What Happened, Miss Simone? é ter conseguido retratar exatamente isso: intensidade, paixão, gênio e, como não poderia deixar de ser, música. A atualidade do tema, trazido à tona com as recentes tensões raciais de violência policial nos Estados Unidos, dizem que essa é uma cicatriz que está longe de estar curada.